Compor, sentir
Ó vida minha canta meu coração vida
estranha
Era a primavera o rio rápido subia
Ouvia o mar bater sem conseguir
compreender
Era o tempo dos primeiros amores
E tudo era possível era só querer
Era tudo tão simples quando te
esperava
E era o carnaval os bailes os cortejos
Chamais e vêm todos os que antes
chamáveis
Esse ser dos espantos medonhos?
Não as envolve a sombra do mínimo
manto
Era, era, tanta coisa
Trinta dias tem o mês, ele próprio
coisa feita
É formidável janeiro quando se
aproxima
belo, era uma vez
E para ver-te verdadeiramente
A melhor coisa que fez
Às vezes se te lembras procurava-te
Mas o preço que pago por te ter, se
soubesses como é, Tu sabe como era
E havia para as coisas sempre uma
saída
Olhai as coisas que já há muito não
olhávamos
O choro lava os olhos e com novo
espanto
Esperas por quem talvez tenha morrido
Eu não te faço falta e não tem sentido
ou nem sequer talvez tenha existido
E não deixa de ser legítima a
pergunta:
Era depois da morte ou era antes da
morte?
Mas haveria morte verdadeiramente?
Eu próprio não sei dizer. Quando foi?
Só sei que tinha o poder duma criança
Como podia estar ali se tinha estado
noutro sítio
Entre as coisas e mim havia vizinhança
E tudo se passava numa outra vida
Sou todo deste tempo e são meus estes
dias
Senhor de tudo o que depois não tive
Eu experimentava as coisas e gostaria
de as escrever e não era capaz
Era talvez em tempo de tormenta
E não que o dia fosse mau, era
impróprio
Mudou um simples tempo de verbo e tudo
mudou
Já se falava deles no imperfeito e não
no presente
E ao longo da vereda vem aquele a quem
a própria dor não dói
Impossível voltar atrás. Agora é a
morte. Ou a vida.
Semelhante descrição perece - me
ilustrar um dos caminhos do poeta
Todo o tempo se lhe ia em polir o seu
poema e muitas horas o dia
Antecipo regresso definitivo
Poesia: ao escrever dou à terra um
pouco do que é da terra.
Deixei de sentir coisa alguma e
continuei a escrever
E não pedi nenhuma explicação.
Um cut-ups de Ruy Belo.
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